terça-feira, 8 de dezembro de 2009

α ... ω

De dentro daquele líquido espesso e quente nascia, por entre as pernas da mulher, aquela criança. Era um menino que veio à luz num entardecer de setembro. Nasceu sem bigodes e, apesar de ter mais cabelo do que qualquer outro bebê, a calvície era acentuada. Não trajava nada, nenhum linho ou ceda de muito respeito. Chegara nu, como é típico de um recém-nascido. E esperneava, após receber um tapinha na bunda, pela enfermeira. Era novo e as mulheres já lhe davam tapinhas na bunda!




Já limpo e trajado em vestes nobres, era alimentado por muitas papinhas e levado para passear em seu carrinho, uma cadeira de rodas. Os dentes começavam a apontar nas gengivas murchas. As costas começavam a se endireitar. A calva, com sua penugem rala e fina, já não existia; tinha dado lugar a uma vasta cabeleira em seus anos de rock. Não demorou muito a falar, parou de balbuciar baboso. Com certeza falava!



Foi uma criança ativa e bagunceira. Fazia muita arte e, desde novo, já mostrava estar além de seu tempo. Um artista, com certeza, em todos os sentidos. Estudante de brilho - apesar de ter reconhecimento de poucos. Criança prodigiosa. Muito incompreendido por todos que lhe cercavam. Recebeu muitas palmadas, mas isso não lhe traumatizou muito.



Demorou para que, com as pernas firmes, estivesse livre de sua cadeira de rodas. Já andava com as próprias pernas. Demorou ainda mais para subir às escadarias do Jornal, onde sonhava, mais tarde, se tornar chefe. Inflamaria com seus discursos políticos e encheria seus pais de orgulho. Subiu muitas vezes às escadarias da mente também, coisa que lhe fascinava muito. E levava jeito com isso. O que lhe fez surgir uma incrível vontade de cursar psicologia.



Mas o destino lhe pregou muitas peças. Entrou para a faculdade de engenharia, onde passou por muitos apertos, o que já era de se esperar, visto que não levava muito jeito e nem tinha muita paciência com os números. Mas teve sucesso em sua vida profissional.



Os cabelos já começavam a cair e os bigodes já precisavam ser aparados, na maioria das vezes, raspados.



Aos poucos, com o passar dos anos, foi voltando a fazer suas bagunças e até a receber alguns puxões de orelha, agora de sua esposa, que assumira a difícil tarefa de sua sogra. Continuava sendo incompreendido pelas pessoas. Já não era tão ativo. Foi esquecendo das palavras e parando de falar. Também desaprendeu a andar, e voltou a usar uma cadeira de rodas. Precisava de fraldas, como no tempo de sua infância.



Já não tinha mais a vasta cabeleira dos seus anos de rock. No lugar, readquirira aquela calvície com rala penugem, mas ainda tinha mais cabelos do que qualquer recém-nascido. Os dentes caíram e agora só lhe restavam aquelas gengivas murchas dentro da boca. Por causa disso, voltou a comer papinhas.



Vivia levantando as saias que, inocentes e distraídas, passavam por perto dele. Procurava sempre por entre as pernas das mulheres, talvez na esperança de voltar lá pra dentro e sentir o líquido espesso e quente de sua formação embrionária, numa saudade inconsciente, talvez. As costas voltaram a se encurvar. Babava, como na infância.



Mas foi em um entardecer de inverno que, dentro de sua banheira com líquido não muito espesso, mas quente, esperneando, veio a falecer. Assim terminou um ciclo normal, de uma vida normal, que poderia ter sido muito, porém não havia sido mais.

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